terça-feira, 26 de abril de 2011

30 minutos


Depois de esperar a chuva cair, fui eu quem começou a chorar. Não acreditava que aquilo e outras situações que aconteciam repetidamente ainda me mantinham no mesmo emprego. Chorei de vergonha, de impotência, de raiva, de tristeza. Ver que nas mãos que reanimava um recém-nascido de trinta e três semanas não adiantava o esforço, a paixão e o gostar do que faz, tirar um dinheiro do bolso às vezes para ajudar a comprar uma medicação, fraldas, sabonete ou até uma passagem de volta para a mãe que mora em outra cidade. Não adiantava ter estudado por sete anos e meio, ter me atrasado na faculdade para ter de trabalhar e ajudar minha família. Ter feito uma residência meio desastrosa, em meio à falta de recursos financeiros, novamente ter de por em detrimento meus estudos ao apoio financeiro à família, ter de escolher entre lazer e obrigações, ter depressão e ser chamada de louca pelos seus preceptores, ter um hospital universitário, uma diretora de pediatria e pediatras apaixonados pelo seu trabalho, onde não negavam vaga para criança sequer, mesmo que as enfermarias e UTIs estivessem lotadas (as crianças poderiam ficar nas cadeiras, nos corredores ou até no chão em um pedaço de papelão, como foi na epidemia de dengue no Maranhão em 2007). Naquele momento, não adiantava os idiomas que eu falava, os anos em que estudei piano, tantos livros que li, atualizações, congressos... Não adiantava minha paixão pela profissão. Foram anos que se passaram em minutos. Em trinta minutos. Enquanto reanimava na escuridão, chorava como a criança que achava que no mundo tudo era certo, seguro, responsável, não essa realidade caótica. Eram três crianças graves em uma unidade semi-intensiva neonatal. Eu realmente me achava na escuridão, na escuridão da minha alma. Não sabia o que fazer, onde ir... Adiantava reclamações e alertas já feitos anteriormente? Foram trinta minutos em que a energia faltou, não sabiam como ligar o gerador, a reanimação não funcionava direito. Ao chegar em casa, desabafei: “não estudei tanto,me esforcei em meio a humilhações, me estressei e me estresso todos os dias para não fazer aquilo que aprendi”. É, a saúde pública é um caos e a gente tenta fazer o melhor possível. Como disse Ricardo Gurgel, vice-presidente da Sociedade Sergipana de Pediatria em entrevista ao Fantástico: “O pediatra trabalha muito, recebe telefonema em casa, tem que estar à disposição da família. E ganha pouco”. Quando me acalmei e pensei que só o que podia esperar é que aquela criança morresse (nem a mãe a queria), me vi em confronto comigo mesma: “não é isso que te faz feliz, ajudar as pessoas, tranqüilizar e consolar famílias, compartilhar momentos bons e ruins, cuidar de crianças? Melhor garantir esse emprego”. Percebi que meu coração estava se embrutecendo paulatinamente, imperceptivelmente, mas estava. Porém, o medo de me tornar mais um daqueles médicos que nem olham no rosto do paciente, não sabe dar uma palavra de conforto, não sorri, não tem paciência para escutar, não examina, foi bem maior. Fiz um juramento e esse foi o momento mais feliz da minha vida, o ápice de tanta luta. Agradeço àqueles que reconhecem meu trabalho, até os que o fazem em silêncio. Em trinta minutos,vergonha, raiva, desespero, impotência, escuridão me fizeram ruir. Em trinta minutos, lembranças de sorrisos, esperança, incansável busca pelo saber e a luz de Deus me fizeram voltar a acreditar.

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